domingo, 20 de março de 2011

DIREITO DE FAMÍLIA NO NOVO CÓDIGO CIVIL

Objetiva-se, com o presente trabalho, proporcionar uma visão geral das novas e relevantes questões do Direito de Família, em vista das mudanças ocorridas desde a Constituição Federal de 88, com o surgimento de novas leis que atendem às mutações econômico-sociais do mundo contemporâneo, trazendo indisfarçável reflexo nas relações paterno-filiais. Novos tempos, com formidável evolução legislativa a exigir constante atualização dos estudiosos da ciência jurídica.

Novidade maior dos dias de hoje decorre da aprovação do novo Código Civil brasileiro (Projeto de lei original n. 634/75, que veio a converter-se na Lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002), com vigência aprazada para um ano após sua publicação (11 de janeiro de 2003), incorporando em seu texto muitas das alterações trazidas pelas leis especiais e também introduzindo importantes mudanças em todos os livros de nosso ordenamento civil, especialmente no Direito de Família.

O período de vacatio legis destinou-se ao indispensável estudo da novel legislação abrindo oportunidade para críticas de eventuais imperfeições e sugestões para que sejam corrigidas pela reforma que certamente se fará em muitos de seus dispositivos, visando seu almejado aperfeiçoamento.

O novo Código Civil mantém a estrutura básica do Código de 1916, com a clássica divisão em Parte Geral e Parte Especial, nesta se enquadrando os Livros que tratam das matérias específicas - Direito de Família, Direito das Coisas, Direito das Obrigações e Direito das Sucessões e, por acréscimo, o Direito de Empresa, que abrange a parte geral do antigo Código Comercial. O Direito de Família é tratado no Livro IV do novo Código, ocupando os artigos 1.511 a 1.783, com divisão em quatro Títulos assim nominados: Do Direito Pessoal, Do Direito Patrimonial, Da União Estável, Da Tutela e Da Curatela.

Logo se percebe que o novo ordenamento abandona a visão patriarcalista que inspirou a elaboração do Código revogado, quando o casamento era a única forma de constituição da família e nesta imperava a figura do marido, ficando a mulher em situação submissa e inferiorizada.

A visão atual é bem outra, com ampliação das formas de constituição do ente familiar e a consagração do princípio da igualdade de tratamento entre marido e mulher, assim como iguais são todos os filhos, hoje respeitados em sua dignidade de pessoa humana, independente de sua origem familiar.

Essas importantes mudanças no plano jurídico da família não vieram somente agora, com o novo Código Civil. Na verdade, a evolução vem ocorrendo em etapas, desde meados do século passado, valendo ressaltar o texto da Lei 4.121, de 1962, conhecida como Estatuto da Mulher Casada, que afastou muitas das discriminações antes observadas em face da mulher.

Na seqüência desse evoluir legislativo, sobreveio, em junho de 1977, a Emenda Constitucional nº 9, a excluir o caráter indissolúvel do casamento, com a instituição do divórcio, que teve sua regulamentação na Lei n. 6.515/77.

Mas a grande virada se deu com a Constituição Federal de 1988, que introduziu relevantes mudanças no conceito de família e no tratamento dispensado a essa instituição considerada a base da sociedade. Podem ser apontadas quatro vertentes básicas nesse facho de luz ditado pelos artigos 226 e seguintes da Carta constitucional: a) ampliação das formas de constituição da família, que antes se circunscrevia ao casamento, acrescendo-se como entidades familiares a união estável e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes; b) facilitação da dissolução do casamento pelo divórcio direto após dois anos de separação de fato, e pela conversão da separação judicial em divórcio após um ano; c) igualdade de direitos e deveres do homem e da mulher na sociedade conjugal, e d) igualdade dos filhos, havidos ou não do casamento, ou por adoção, garantindo-se a todos os mesmos direitos e deveres e sendo vedada qualquer discriminação decorrente de sua origem.

Como decorrência dos novos mandamentos constitucionais, foram editadas leis especiais garantidoras daqueles direitos, com atualização do texto da Lei 6.515/77, relativa à separação judicial e ao divórcio, a edição do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), a normatização do reconhecimento de filhos havidos fora do casamento (Lei 8.560/92) e as leis da união estável (ns. 8.971/94 e 9.278/96), dando aos companheiros direitos a alimentos, meação e herança.

Esse repositório de leis inovadoras certamente passou a produzir forte impacto no texto arcaico do Código Civil de 1916, tornando letra morta muitos de seus dispositivos, alguns revogados expressamente (como os referentes ao antigo desquite), enquanto outros subsistem no texto escrito como simples referência histórica em vista de não terem sido recepcionados pela Carta de 88 e serem incompatíveis com os novos ordenamentos legais (por exemplo, o capítulo do velho Código referente à odiosa discriminação dos filhos em legítimos, legitimados e ilegítimos).

Era preciso, portanto, que se atualizasse o texto do Código, para que deixasse de ser um simples conjunto de normas relativas ao casamento e outros institutos paralelos, passando efetivamente a regulamentar o Direito de Família com as concepções atuais de sua ampliação e respeito às figuras dos seus componentes humanos.

Para um estudo mais abrangente das inúmeras e importantes inovações trazidas ao Direito de Família pelo novo Código Civil, sempre lembrando que muitas delas já constam de leis esparsas, agora incorporadas ao texto do novo ordenamento, vamos a um destaque dos principais tópicos, atendendo a critérios de relevância, alterações no sistema jurídico e justificação de crítica construtiva.

MAIORIDADE CIVIL

Antecipa-se a plena capacidade civil da pessoa humana, dos 21 anos para 18 anos de idade. Nesse sentido a disposição do artigo 5º do novo Código Civil, trazendo importantes reflexos para o campo do Direito de Família, como nas situações de autorização paterna para o casamento, sujeição ao pátrio poder, que passa a denominar-se "poder familiar", cessação da tutela, cessação do direito a alimentos etc.. Sob essa mesma ótica da antecipação da capacidade, reduz-se para 16 anos de idade o limite para emancipação dos filhos por outorga paterna (artigo 5º, parágrafo único, inciso I), e iguala-se também em 16 anos a idade do homem e da mulher para fins de capacitação nupcial (artigo 1.517 do novo CC).


CASAMENTO CIVIL E RELIGIOSO

O casamento é conceituado como comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges (artigo 1.511), princípios estes que serão repisados no capítulo da eficácia do casamento (art. 1.565).

Disposições sobre o casamento religioso, em alteração a normas da Lei registrária (6.015/73), facilitam o registro civil desta espécie de união legal. A facilitação decorre da possibilidade de efetuar-se o registro a qualquer tempo, mesmo depois de vencido o prazo de 90 dias de sua realização, bastando que se renove a habilitação matrimonial, providência esta que visa apurar a inexistência de impedimentos para o casamento.


IMPEDIMENTOS MATRIMONIAIS

O novo Código reduz os impedimentos matrimoniais a sete situações, conforme enumeração do artigo 1.521. Correspondem aos impedimentos absolutos do Código de 1916, descritos em seu artigo 183, incisos I a VIII, com exceção do inciso VII, que proíbe o casamento do cônjuge adúltero com o seu co-réu por tal condenado. Bem agiu o legislador em afastar o impedimento decorrente de adultério, seja por cuidar-se de figura que se acha esmaecida e em fase de extinção como ilícito penal, como também por contrapor-se, aquele impedimento, à solução naturalmente romântica de uma nova união com a pessoa amada, desde que dissolvido o casamento por divórcio ou viuvez.

Cingem-se, os impedimentos absolutos, às hipóteses tradicionais de vedação do casamento entre parentes próximos, ascendentes e descendentes, colaterais até o terceiro grau, adotante e adotado, afins em linha reta, pessoas casadas e união do cônjuge sobrevivente com o condenado por homicídio ou tentativa de homicídio contra o seu consorte.

Nas primeiras hipóteses, objetiva-se evitar uniões de caráter incestuoso, que são igualmente ofensivas à moral e aos bons costumes. Note-se que a vedação relativa aos afins em linha reta passa a abranger também as pessoas em união estável, em vista da ampliação daquele conceito de parentesco legal, nos termos dos artigo 1.595 do novo Código Civil, antes limitado ao cônjuge, e agora extensivo ao companheiro.

Quanto aos impedimentos entre colaterais, observa-se que o novo Código não contempla a ressalva de autorização judicial para o casamento entre os colaterais de terceiro grau (tio e sobrinha), que no atual sistema jurídico tem lugar por força de disposição do Decreto-Lei 3.200/41. Resta questionável se estaria revogada essa norma excepcional, diante da norma genérica do novo ordenamento civil, ou se mantida como regra especial prevalecente.

O exame dos impedimentos matrimoniais faz-se em procedimento administrativo da habilitação, perante o Oficial do Registro Civil do domicílio dos nubentes. A esse respeito, enseja reparo a disposição do art. 1.526 do novo Código, a exigir que a habilitação seja "homologada pelo juiz". Mas que juiz será esse? O juiz de casamentos ou Juiz de Direito Corregedor do Cartório? Nenhum dos dois deve ter essa incumbência, mas sim o oficial do registro civil, que é quem prepara a habilitação. Esse é o sistema atual, em que o juiz somente decide quando há impugnação de terceiro ou do Ministério Público, sem atendimento pelas partes.

CAUSAS SUSPENSIVAS

Fora do rol dos impedimentos matrimoniais, mas com eles relacionados, situam-se as "causas suspensivas", dispondo a respeito o novo Código, no artigo 1.523, que não devem contrair casamento certas pessoas, em hipóteses em que Código revogado, no artigo 183, incisos XIII a XVI, classificava como impedimentos meramente proibitivos, embora com algumas alterações no texto. As disposições referem-se ao viúvo ou viúva que tiver filho do cônjuge falecido, enquanto não proceder ao inventário e partilha dos bens; ao divorciado, enquanto não tiver sido homologada ou decidida a partilha dos bens do casal; à viúva ou mulher com casamento anulado, até 10 meses depois da viuvez ou da dissolução do casamento; e, finalmente, ao tutor ou curador e seus parentes, com a pessoa tutelada ou curatelada.

Note-se o emprego da expressão "não devem", em lugar de "não podem", para excluir o caráter impeditivo daquelas causas que, na verdade, desaparecem desde que haja autorização judicial. De qualquer forma, mesmo que tais causas sejam violadas, não acarretam a invalidade do casamento, limitando-se à sanção de obrigatoriedade do regime da separação de bens (artigo 1.641 do novo CC).

CAUSAS DE NULIDADE E DE ANULAÇÃO DO CASAMENTO

No capítulo da invalidade do casamento, o novo Código distingue os casos de casamento nulo e de casamento anulável.

Nulo será o casamento contraído: (a) por enfermo mental sem discernimento para os atos da vida civil, e (b) por infringência de impedimento (artigo 1.548). Na hipótese primeira, classificam-se os portadores de doença mental que torne a pessoa absolutamente incapaz, distinguindo-se de outras situações de incapacidade relativa, que ocasionam apenas a anulabilidade do ato. Na segunda hipótese, lembre-se que o novo Código apenas considera como impedimentos as situações mais graves, enumeradas no artigo 1.521. São os chamados impedimentos absolutos do Código de 1916, uma vez que os impedimentos relativos passam a ser considerados, pelo novo ordenamento, como meras causas de anulação do casamento.

Com efeito, no rol de causas de anulação do casamento, o novo Código Civil trata de situações relacionadas à falta da idade mínima para casar (16 anos), à falta de autorização do representante legal para os menores de 18 anos, ao vício de vontade, à incapacidade relativa, à atuação de mandatário com procuração revogada e à incompetência da autoridade celebrante (artigo 1.550). A questão do mandato revogado constitui inovação em relação ao ordenamento anterior, mas com interessante ressalva de que não tenha havido coabitação entre os cônjuges, vez que esse tipo de comportamento estaria convalidando a celebração do casamento ainda que por mandatário excluído.

Enquadram-se como causas de anulação do casamento por vício de vontade aquelas relativas ao erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge (artigo 1.556). A enumeração dos casos de "erro essencial", conforme artigo 1.557 do novo Código, repete os mesmos requisitos fáticos enunciados no artigo 219 do anterior, com exceção do referente ao "defloramento da mulher", que a jurisprudência já considerava revogado pelas superiores regras de igualdade e de vedação de atos ofensivos à dignidade da pessoa humana. Em acréscimo, o novo Código prevê que se anule o casamento também na hipótese de doença mental grave de um dos cônjuges, anterior ao casamento, que torne insuportável a vida em comum ao cônjuge enganado.

DIREITOS E DEVERES CONJUGAIS

Em capítulo sobre a eficácia do casamento, o novo Código Civil dispõe que homem e mulher assumem mutuamente a condição de consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da família (artigo 1.565).

Nota-se a preocupação em extirpar o tratamento jurídico diferenciado que o Código de 1916 estabeleceu entre os cônjuges, bastando lembrar que seu artigo 233 ainda se refere ao marido como o "chefe" da sociedade conjugal, e o artigo 240, originalmente, classificava a mulher como "auxiliar", e com a reforma da Lei 4.121/61 deu-lhe promoção para "assistente", mas conservando a submissão feminina, uma vez que sua incumbência restringe-se a velar pela direção material e moral da casa.

O princípio igualitário não se compadece com essa visão discriminatória dos membros da entidade familiar. Por isso é que se enfatiza, no artigo 1.567 do novo Código, que a direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.

O rol de deveres de ambos os cônjuges, previsto no artigo 1.566 do novo ordenamento, repete os quatro incisos do artigo 231 do Código velho - fidelidade, vida em comum, assistência, criação dos filhos -, e acrescenta mais um: respeito e consideração mútuos. Trata-se de expressão que o legislador também utiliza na definição dos deveres dos companheiros em união estável (Lei 9.278/96, artigo 2o). Não se cuida de mera extensão pleonástica do dever de assistência moral. A ênfase se justifica em razão da "comunhão de vida" imanente ao casamento, de sorte que o distanciamento por falta de diálogo, a frieza no trato pessoal e outras falhas de comunicação podem afetar aquela convivência, motivando, com isso, novas figuras de quebra de dever conjugal.


Euclides Benedito de Oliveira, Advogado, Doutor em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, consultor jurídico, conferencista, autor de consagradas obras, professor de direito e Vice-Presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) em São Paulo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário